Mercado

Combustível da riqueza

A história mostra quanto a economia de algumas nações evoluiu no instante em que elas estiveram à frente de uma revolução tecnológica. Foi assim com os Estados Unidos, quando Henry Ford criou a linha de produção do automóvel, em 1913, e com o Japão, com a popularização do transistor, na década de 50. O Brasil teve uma chance parecida em 1906, no momento em que Santos Dumont desfilou com o 14 Bis em Paris. Mas ele acabou perdendo a corrida para os irmãos americanos Wilbur e Orville Wright, os primeiros a lançar um modelo de avião comercial, em 1910. Quase um século depois dessa derrota, o Brasil tem novamente a chance de liderar uma grande corrida no campo da inovação. A disputa é pelo desenvolvimento de um combustível economicamente viável que possa substituir pelo menos em parte a demanda mundial por petróleo e que seja capaz de aliviar um planeta sufocado por poluentes. Há um consenso de que o produto que preenche melhor esses requisitos no momento é o etanol, cujo fabricante mais eficiente e avançado é, de longe, o Brasil. Não é por acaso que o país vem recebendo uma avalanche de dinheiro de investidores internacionais — somente nas últimas semanas, foram anunciados novos projetos, totalizando mais de 3 bilhões de dólares. “Vai levar mais de uma década para qualquer outra nação igualar o estágio brasileiro”, diz David Rothkopf, diretor da consultoria especializada em energia Garten Rothkopf e ex-assessor da Casa Branca durante o governo Bill Clinton.

Em função da importância estratégica do etanol para o mercado internacional, a concorrência tende a ficar cada vez mais acirrada. No momento, os países disputam posições numa nova fronteira tecnológica desse campo — a do etanol de celulose, um tipo de álcool revolucionário, que pode ser feito com toda sorte de plantas, incluindo a palha de milho e o bagaço de cana-de-açúcar. Essa corrida pode ser decisiva para o domínio global da área. Quem conseguir desenvolver comercialmente o etanol de celulose vai multiplicar a produção na mesma área plantada. O Brasil está muito mais próximo do milagre — por ora ainda incerto. Um dos grupos nacionais em estágio mais avançado é a Biocell, companhia criada recentemente pela Votorantim Novos Negócios para atuar exclusivamente nessa área. Ela concentra hoje as melhores pesquisas já feitas sobre a produção do chamado álcool de celulose, reunidas por meio de convênios e licenciamento de patentes com empresas, universidades e institutos de pesquisas estrangeiros.

A corrida pela liderança

Desde 2002, a produção mundial de etanol aumentou 50%.A evolução deve continuar graças sobretudo ao papel do Brasil e dos Estados Unidos, que dominam o mercado e têm novos projetos nessa área para os próximos anos

A evolução da produção de etanol no mundo (em bilhões de litros)

2002 34

2003 39

2004 41

2005 45

2006 50

2012(1) 113

(1) Projeção;

Os grandes projetos do Brasil e dos EUA para os próximos anos

País Total de usinas em operação Número de usinas em construção(2) Investimentos na construção das novas usinas (em bilhões de dólares)

Brasil 336 73 14,6

Estados Unidos 114 80 16

(2) Até 2009

Fontes: Unica, Renewable Fuel Association e AgraFNP/F. O. Licht

Conforme anteciparam a EXAME os executivos da companhia, o cronograma da empresa prevê no segundo semestre um investimento de 30 milhões a 40 milhões de dólares na construção da primeira usina brasileira desse tipo de etanol. Se a fábrica vingar, a Biocell terá tecnologia para triplicar a produção nacional de etanol. “Existem outras fábricas similares no mundo, mas nenhuma conseguiu fazer um produto com preço acessível”, diz Fernando Reinach, diretor executivo da Votorantim Novos Negócios. “O sucesso do empreendimento permitirá ao Brasil dar um enorme salto tecnológico nessa área.” Todas as inovações desenvolvidas pela Votorantim Novos Negócios são patenteadas nos Estados Unidos — o que lhe garante a dianteira por algum tempo.

A construção da primeira usina economicamente viável para a produção de etanol de celulose é o capítulo mais recente de uma saga tecnológica nacional iniciada nos anos 70 (veja quadro na pág. 88). Boa parte do conhecimento acumulado no setor pode ser encontrada nos arquivos do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba, no interior de São Paulo. O CTC foi criado em 1969 como um laboratório de pesquisas da Copersucar, maior cooperativa de açúcar e álcool do mundo. Em 2004 tornou-se uma associação privada, mantida por empresas do setor. Seus 143 associados respondem por metade da produção nacional de cana-de-açúcar. Dos laboratórios do CTC saíram 60 das mais de 100 variedades de cana comercializadas no mercado hoje. São plantas adaptadas às mais diversas condições de clima e de solo e resistentes a pragas ainda não controladas em outros países.

As empresas de equipamento também fizeram a sua parte e criaram uma cadeia de fornecedores sem paralelo em outros países. Em Sertãozinho, no interior de São Paulo, prospera uma espécie de Vale do Silício do etanol. O município concentra mais de 500 empresas do setor — a maioria de pequeno e médio porte –, que, além de abastecer a indústria local, exportam para 70 países. O grande destaque na fabricação de máquinas para essa área no país é a Dedini, de Piracicaba. Desde os anos 80, ela produz os maiores e mais eficientes equipamentos para usinas. Sozinha, detém 25% do mercado global. Sua supremacia despertou a atenção até da americana General Electric. Em visita ao país, Lorraine Bolsinger, vice-presidente mundial da GE para a área de tecnologias limpas, fez questão de se encontrar com executivos da Dedini.

Mais por menos

Pelo menos em termos de matéria-prima, o Brasil leva vantagem na produção de etanol.Acana-de-açúcar usada no país tem o menor custo de produção e rende mais litros por hectare.Compare com outras fontes de energia

Matéria prima/ País Cana-de-açúcar

(Brasil)

Milho

(Estados Unidos) BETERRABA

(União Européia)

Custo de produção do litro (em dólar) 0,22 0,30 0,53

Produtividade em litros por hectare 6 000 3 100 5 000

Fonte: AgraFNP/F. O. Licht

Graças a esse cenário, o Brasil estaria folgado na corrida pela liderança da revolução tecnológica do etanol, exceto por um “detalhe”: nos últimos anos, nada menos que a maior potência econômica do mundo resolveu entrar na concorrência. O governo George W. Bush, dos Estados Unidos, tem pressa em se livrar da dependência do petróleo. Por isso, no ano passado turbinou a expansão do etanol. As 114 usinas locais despejaram 20 bilhões de litros do biocombustível no mercado e, pela primeira vez, tiraram o Brasil do topo do ranking. A oferta deve quase triplicar nos próximos cinco anos. Por trás desse aumento está a Archer Daniels Midland, conhecida como ADM. Até o final deste ano, a empresa deve atingir a marca de 6 bilhões de litros de etanol — o equivalente a mais de um terço da produção total do Brasil.

Apesar da presença no setor de empresas como a ADM, a grande força por trás do etanol americano é o governo Bush. No ano passado, sua administração gastou quase 9 bilhões de dólares em forma de subsídios ao setor. O grande problema dos Estados Unidos é que, se essa ajuda for interrompida, ele deixará de ser competitivo. “No longo prazo, nem a produção de milho, muito menos a de etanol, é economicamente sustentável nos Estados Unidos”, diz Marcos Jank, presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). Para complicar, o milho também é largamente utilizado na alimentação. Em 2006, o etanol consumiu um volume recorde de milho nos Estados Unidos — cerca de 20% da safra (41 milhões de toneladas). A demanda acima da média aumentou em 80% a cotação do grão e pressionou os valores de outras commodities, como a soja, gerando uma alta em cascata nos preços de rações e alimentos. “Enquanto dependerem do milho para fabricar etanol, os americanos vão viver o seguinte dilema: escolher entre a produção de alimentos e a de energia”, diz Plinio Nastari, diretor da Datagro, consultoria especializada em agronegócio.

Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, não há nuvens negras no cenário do etanol no Brasil. A cada dia, surgem novas provas eloqüentes da importância global do negócio e de como o país está à frente na corrida. Nas últimas semanas, além da visita do presidente Bush ao país, que tratou de alinhavar acordos de cooperação tecnológica na área entre americanos e brasileiros, o mercado foi surpreendido pela divulgação de dois grandes negócios. No mais graúdo deles, o fundo Brasil Energy, capitaneado por Henri Philippe Reichstul, ex-presidente da Petrobras, vai colocar 2 bilhões de dólares na formação de um cluster nacional de produção de etanol. O dinheiro sairá principalmente do caixa de investidores, como o indiano Vinod Khosla, criador da Sun Microsystems, e James Wolfensohn, ex-presidente do Banco Mundial. No outro negócio, a empresa Global Foods, com sede na Holanda, em parceira com fundos como o americano Carlyle Riverstone, planeja injetar 1 bilhão de dólares na criação e expansão da segunda maior empresa do setor. Batizada de Companhia Nacional de Açúcar e Álcool (CNAA), ela resultará da união dos grupos Santa Elisa e Vale do Rosário.

Inovação nacional

Os grandes saltos tecnológicos na produção do etanol brasileiro

Anos 70

– A adaptação de uma variedade de cana natural da Argentina, mais robusta que a nacional, viabiliza a expansão acelerada da cultura e dá sustentação ao Proálcool

Anos 80

– Novas variedades de cana lançadas pelo Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) levam a cultura para áreas menos férteis

– As empresas Dedini e Zanini, apoiadas pelos institutos de pesquisa, lançam os mais eficientes e maiores equipamentos de produção de álcool do mundo, triplicando a produção na primeira metade da década

Anos 90

– O CTC é autorizado a testar em campo a primeira variedade transgênica de cana, resistente a doenças.A planta ainda está em teste

2000

– A Alellyx desenvolve e testa em campo novas variedades de cana geneticamente modificadas, com potencial para elevar a produtividade em 80% na mesma área plantada

– AVotorantim Novos Negócios planeja investir 40 milhões de dólares na construção da primeira planta industrial para extrair álcool de celulose

Fontes: Centro de Tecnologia Canavieira,Votorantim Novos Negócios

Negócios desse porte estão convergindo para o Brasil em função de sua enorme competitividade na área. Atualmente, com a cana-de-açúcar, o país consegue produzir muito mais etanol, com menos matéria-prima, ficando muito à frente dos Estados Unidos e da União Européia. Além de deter tecnologia de ponta na área, o país conta com vantagens naturais, como abundância de terras férteis e de água. Na escala brasileira, tal combinação de vantagens não existe em nenhum outro lugar do planeta. O relatório Panorama da Energia Verde nas Américas, divulgado recentemente, detalha essa supremacia. Conduzido pela consultoria Garten Rothkopf a pedido do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o estudo analisou o que 50 países estão fazendo em termos de regulamentação ambiental, políticas públicas, organização do mercado e investimentos para promover o etanol. De acordo com o trabalho, nada menos que 39 deles criaram leis para desenvolver biocombustíveis. Além disso, 27 tornaram obrigatória sua mistura à gasolina, o que garante demanda no futuro e favorece essa parte do continente. “A América Latina pode se transformar no Golfo Pérsico dos biocombustíveis, e o Brasil será sua principal estrela”, diz Rothkopf.

Por causa da euforia em torno do etanol, sua produção global deve mais que dobrar nos próximos anos, passando dos atuais 50 bilhões de litros para 113 bilhões de litros até 2012. Caso economias importantes ampliem o uso desse tipo de combustível, o etanol viraria um commodity global. Nesse caso, em termos financeiros, o céu é o limite. Se o etanol fosse misturado numa proporção de 10% nos tanques de combustível de todos os veículos do planeta, por exemplo, o mercado atual passaria dos atuais 50 bilhões de dólares para 120 bilhões de dólares. Em alguns países, como o Japão, o governo só não aumentou ainda o uso do etanol por receio de que os principais produtores não consigam suprir a demanda. Cerca de 90% do total fabricado pelos maiorais do setor, Brasil e Estados Unidos, vem sendo usado para abastecer o mercado interno desses países.

A falta de excedente para exportação, porém, é um problema que deverá ser resolvido em breve. Americanos e brasileiros estão erguendo mais de 150 novas usinas, com um investimento de 30 bilhões de dólares. Outros países também devem entrar nesse jogo, como China, Colômbia e Índia, ampliando ainda mais a oferta do combustível. Sem contar o movimento dos concorrentes, o Brasil sozinho teria potencial para abastecer o planeta de etanol. Se o país usar apenas 20% de suas áreas de pastagens, produzirá o suficiente para substituir 10% da gasolina consumida hoje no mundo. “Caso o Brasil chegue a esse patamar, o PIB nacional vai aumentar 30%”, afirma Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor da Unicamp e coordenador do estudo Ampliação da Produção de Álcool no Brasil. “Esses números mostram quanto é importante a liderança nacional no setor.”