Nos últimos anos, a pequena Campo Florido, cidade com 5 800 habitantes no Triângulo Mineiro, começou a romper um marasmo econômico de décadas. Acostumado a ver a população minguar lentamente ano após ano, o município vem observando desde 2002 o fluxo inverso — a economia local passou a atrair não apenas antigos habitantes, que haviam migrado em busca de melhores oportunidades, como cerca de 2 000 trabalhadores temporários, a maioria nordestinos, que chegam no fim de janeiro e ficam pelo menos até novembro. Na esteira desse crescimento de quase 30% da população, a cidade passou a ostentar uma gama de serviços até recentemente inexistentes — uma agência bancária do Banco do Brasil, uma casa lotérica, um hotel, lojas de eletroeletrônicos, além de pequenos negócios, como borracharias, lojas de peças agrícolas e de materiais eletrônicos ligados à atividade rural. Acima de tudo, Campo Florido agora oferece chances concretas de prosperidade a uma população acostumada a sobreviver da pecuária, que pouco rendia, e do plantio de grãos, que após colhidos eram processados em outros municípios.
Por trás da transformação econômica da pequena cidade mineira — e de cerca de 1 000 outros municípios do país que vivem expansão semelhante — encontra-se o fenômeno etanol. O combustível verde ganhou as manchetes em todo o mundo, seduziu grandes personalidades e investidores internacionais, do bilionário Bill Gates ao presidente americano, George W. Bush, um histórico defensor da indústria do petróleo, e avança rapidamente no interior do país. A produção nacional cresce à taxa de 9% ao ano, roubando espaço de culturas menos rentáveis. Desde 2000, a área plantada aumentou 43%, e as exportações cresceram impressionantes 3 000%. O setor já emprega 3,5 milhões de pessoas, das quais 2,5 milhões são trabalhadores temporários. As usinas de açúcar e álcool movimentam 40 bilhões de reais por ano e fazem girar a roda da economia nos recantos mais remotos do país. Embora o centro econômico do setor encontre-se no interior de São Paulo, a fronteira agrícola se desloca para outras regiões. Nos últimos quatro anos, 35 unidades foram inauguradas e outras 90 estão em construção no país (veja quadro na pág. 34). O clima é de efervescência econômica, principalmente nos dois novos pólos do setor, Goiás, onde estão saindo do papel 12 usinas, e Minas Gerais, que recebeu 11 projetos.
É essa efervescência que tem atraído mais e mais pessoas à mineira Campo Florido. A história econômica da cidade já é dividida pelos moradores entre antes e depois de 2002, ano de inauguração da usina Coruripe, do grupo Tercio Wanderley. Antes dela, o cenário era de desolação. Agora, graças às duas unidades, o clima é de euforia. Cerca de 80% da força de trabalho atua em atividades ligadas direta ou indiretamente ao setor de etanol. Quando chegam para o plantio da safra, no final de janeiro, os migrantes ocupam praticamente todos os imóveis disponíveis para locação, pressionando o preço dos aluguéis. Nos dez meses seguintes, aquecem as vendas nos mercados, nas lanchonetes e nos bares locais. Em novembro, antes de retornarem à terra de origem, abarrotam a bagagem com presentes para a família, principalmente DVDs, aparelhos de som e televisores. O comércio, claro, agradece. Apesar de o trabalho temporário dos bóias-frias ser estigmatizado, os estudiosos da agricultura o consideram uma fonte de prosperidade. “Os ganhos sazonais com a colheita geram benefícios imensos para o trabalhador com baixa qualificação”, diz Gervásio de Rezende, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “Essa renda extra movimenta a economia, tanto nas regiões onde trabalham como nas cidades onde moram e retornam após cada colheita.” Atualmente, o salário médio mensal na região está por volta de 1 000 reais, valor alto para o campo.
Campo Florido (MG)
População
5 800 habitantes
Localização
580 quilômetros de Belo Horizonte
Usinas de açúcar e álcool
1 em operação e 1 em construção
Empregos no setor
80% da força de trabalho total da cidade
Os benefícios à população decorrem também de grandes mudanças ocorridas no modelo de plantio no município. Os produtores locais negociaram com o grupo Tercio Wanderley para que a Coruripe terceirizasse a produção de cana. A usina aceitou, e hoje não tem um único pé da planta. Pelo sistema adotado, cerca de 60 agricultores organizam-se em condomínios de fornecedores. Cada condomínio tem sua estrutura de plantio, colheita e transporte de cana, o que reduz custos e permite a troca de experiências entre produtores que não dominam o cultivo. O modelo abriu oportunidade para quem não trabalhava com agricultura — novos investidores, como Sivaldo dos Reis Caetano de Freitas, atual vice-prefeito de Campo Florido. Na adolescência, Freitas foi cortador de cana. A experiência nos canaviais lhe rendeu o posto de gerente dos cortadores de cana na usina Santo Ângelo, em Pirajuba, onde trabalhou por quase 18 anos. Ele arrendou terras da família e consolidou uma propriedade de 1 100 hectares. Seu plano é reunir 2 000 hectares. Para os padrões do setor, Freitas está no rumo de virar um latifundiário.
O fenômeno mais interessante desencadeado pela chegada da usina foi a mudança nas relações políticas no campo, encabeçada pelo pequeno produtor José Ferreira dos Santos, o Zé Messias, e por Antonio Tadeu Magri, um dos maiores agropecuaristas da região. Zé Messias passou parte da vida lutando contra pessoas como Magri. Participou de invasões lideradas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e ajudou a fundar o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade, outra organização que condena a grande propriedade e a produção em larga escala. Em 1993, Zé Messias estava entre as 107 famílias beneficiadas pela partilha de uma fazenda em Campo Florido, desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mas a conquista não teve o sabor esperado. O grupo só conseguia plantar para comer e permanecia preso a uma situação de pobreza extrema. Quando a usina chegou, Zé Messias e alguns vizinhos decidiram que participariam do novo ciclo. Em vez de apenas arrendar a terra para que a usina fizesse o plantio, os agricultores propuseram parceria com o latifundiário Magri — embora não tivessem um tostão para investir. Magri, tradicional produtor de grãos, buscava o que havia de mais moderno para ingressar na cultura da cana, como irrigação, colheita e plantio totalmente mecanizados. Para fazer valer os investimentos, precisava reunir terras para ter escala. Por nove meses, grande produtor e assentados, com o acompanhamento do Incra e de outras entidades do setor, negociaram um contrato que os transformariam em parceiros. Um grupo de 63 famílias entrou com metade de seus lotes. Magri assumiu o compromisso de cultivá-los. Para fertilizar a terra e plantar a cana dos assentados, investiu 9 milhões de reais. Não foi uma tarefa fácil para nenhum dos lados. Magri teve de resistir às críticas dos fazendeiros que julgavam a associação uma maluquice perigosa. Zé Messias e seus companheiros foram considerados traidores entre seus pares e tiveram de deixar o movimento. Hoje, Magri é o maior fornecedor de cana da Coruripe, com quase 3 000 hectares cultivados, e nesta safra vai faturar 9,5 milhões de reais, o dobro do que obtinha com a soja. Zé Messias, que vivia com renda de 180 reais por mês, passou a ganhar 1 500. Uma das maiores conquistas foi a construção de sua casa, com três quartos e ladeada por uma espaçosa varanda.
Goianésia (GO)
População
50 300 habitantes
Localização
180 quilômetros de Goiânia
Usinas de açúcar e álcool
2 em operação e 1 em construção
Empregos no setor
50% da força de trabalho total da cidade
Como um setor associado à figura do coronel déspota e explorador consegue distribuir riqueza? “O usineiro com pose de coronel e o engenho que centralizava o lucro não existem mais. Hoje a indústria canavieira segue os melhores padrões sociais e ambientais, gera renda e empregos”, diz Decio Zylbersztajn, coordenador do Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial, da Universidade de São Paulo. O pontapé inicial das transformações no setor foi uma mudança na forma de usineiros e governo interagirem. “Boa parte da modernização só foi possível porque o setor deixou de sofrer intervenção do Estado, que antes controlava a produção”, diz José Maria da Silveira, pesquisador do Núcleo de Economia Agrícola da Universidade de Campinas. “Em um ambiente de competição, toda a cadeia passou a atuar de forma mais eficiente.”
A cidade de Goianésia, em Goiás, é o retrato dessa evolução. As duas usinas de açúcar e álcool do município são antigas — a Goianésia foi inaugurada em 1961 e a Jalles Machado em 1980. Mas ambas pouco afetavam a economia da cidade, que se destacava no agronegócio goiano com outras culturas, como arroz, pecuária e soja. A desregulamentação do setor de açúcar e álcool, ao longo da década de 90, possibilitou crescimento acelerado das usinas e as transformou no centro econômico da cidade. Sem a tutela do Estado, elas reestruturaram a produção e terceirizaram os negócios, o que incentivou o surgimento de uma cadeia de prestadores de serviços. A maioria nasceu pequena, mas vem acompanhando o crescimento do setor. Veja o exemplo da Viação Cunha. Em 1991, Joelcio da Silva Cunha e o pai montaram a empresa com dois ônibus para fazer o transporte coletivo na cidade. No ano seguinte, a Jalles contratou Cunha para transportar um grupo de funcionários. Na época, bastava um veículo para o serviço. Agora a empresa tem 20 ônibus para atender as usinas e outras empresas, mas pode dobrar a frota. “Vamos ter duas novas usinas na região e já estou negociando o serviço”, diz Cunha. “Se os contratos vingarem, vou precisar de no mínimo mais 20 ônibus.”
Hoje Goianésia é apontada como pólo de desenvolvimento do estado graças à indústria canavieira. Segundo levantamento da prefeitura, o valor adicionado do município (indicador que mede a geração de riqueza) cresceu 62%, em valores reais, desde o início da década, chegando a 428 milhões no ano passado. Com mais dinheiro circulando, o consumo das famílias, dos itens básicos aos mais sofisticados, não pára de crescer. O SuperCouto, tradicional rede de supermercados da cidade, não consegue acompanhar a demanda. “Eu tinha um caminhão velho de 9 toneladas para transportar frutas e verduras. Comprei um novinho de 15 toneladas”, diz Antonio Geraldo Couto, fundador da rede. “Mas ele já não dá conta do serviço.” As motocicletas transformaram-se em mania local, seja para o trabalho no campo, seja para fazer trilhas, o esporte do momento na cidade. A concessionária Honda local vende em média 20 motos por dia. Na praça central, há três lojas especializadas em grifes como Zoomp, Cavalera e Christian Dior — e a saída dos produtos é grande. Cinco novos loteamentos estão sendo abertos e o preço dos imóveis multiplicou por quatro nos últimos dois anos. Um surto de reformas embeleza as empresas. “Nossos clientes estão cada vez mais exigentes”, diz Joeny Portilho, sócia do Hotel Planaltos, o mais tradicional da cidade e em reforma para acompanhar o padrão das redes hoteleiras internacionais. “Temos de oferecer serviços melhores.” A arrecadação própria da prefeitura também cresceu, de 800 000 para 4 milhões de reais. Otávio Lage de Siqueira Filho, prefeito no exercício do segundo mandato e sócio da usina Jalles, investiu parte do dinheiro na remodelação de ruas, praças e parques, na recuperação de prédios públicos e no aprimoramento da gestão. A organização urbana reforçou a imagem de prosperidade em Goianésia.
Mercado em alta
Nos últimos anos, o setor de etanol no Brasil vive uma fase de crescimento vigoroso da produção e da exportação
Produção
(em bilhões de litros) Área plantada(2)
(em milhões de hectares) Exportação
(em milhões de dólares) Número de usinas(2)
2000 10,5 3,7 34 224
2001 11,5 3,9 92 222
2002 12,6 4,0 169 218
2003 14,8 4,2 159 225
2004 15,4 4,5 498 230
2005 15,9 4,8 766 240
2006 17,4(1) 5,3 1058(1) 253
(1) Previsão (2) Na Região Centro-Sul do país
Fontes: Datagro, Energy Information Administration, Unica
Como é comum durante ciclos virtuosos de crescimento, os empresários locais aproveitam para expandir e diversificar os negócios, o que faz a roda do desenvolvimento girar ainda mais. Os irmãos Lopes, sócios do Supermercados Brasil, estão entre os investidores mais agressivos. Eles transformaram o pequeno mercado aberto pelo pai nos anos 80 numa rede de supermercados com quatros filiais, uma delas na capital, Goiânia. Paralelamente, tornaram-se proprietários de um frigorífico, de uma transportadora de gás e de um laboratório fotográfico. Também mantêm projetos em suinocultura, piscicultura e, recentemente, passaram a investir no plantio de seringueiras, a nova cultura local. “Nossos negócios acompanham o crescimento das usinas”, diz Edvaldo Antônio Lopes, um dos irmãos. “Como elas estão num bom momento, é hora de crescer junto.”