Nestes tempos em que a mobilidade é centro mundial de atenções, o engenheiro mecânico de formação Ricardo Simões de Abreu é constantemente requisitado.
Seja para discussões técnicas em instituições nacionais e internacionais, seja para webinars relacionados ao tema, ele é sempre convocado – e dificilmente recusa participar.
“O Ricardo é autoridade mundial em mobilidade”, resumiu Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA), durante entrevista da entidade do setor sucroenergético no fim de dezembro de 2021.
Diante uma autoridade dessas, este jornalista quis se preparar a fundo para uma entrevista de perguntas e respostas que geralmente é feita por e-mail ou por videoconferência. Mas não. Por mensagem no WhatsApp, Abreu me convidou para uma entrevista por telefone. Foi na hora.
Durante os cerca de 30 minutos da ligação, ele foi de um didatismo típico de quem domina o que fala sem, por isso, perder a simplicidade.
É como Abreu relata em seu perfil no Linkedin: “meu interesse atual é a sustentabilidade da mobilidade, acredito em encontrar o melhor arranjo das tecnologias que valorize o equilíbrio social, econômico e o meio ambiente.”
Acompanhe a entrevista:
JornalCana – O avanço dos veículos elétricos e eletrificados (híbridos) irá aposentar o etanol?
Ricardo Simões de Abreu – Não. Os elétricos e eletrificados (no qual a energia chega na roda com motor elétrico) não irão prejudicar o etanol porque eles são complementares.
JornalCana – Como assim?
Ricardo Simões de Abreu – Se o veículo é híbrido, sua vantagem é recuperar a energia na frenagem. E, aqui, não importa se é híbrido com motor de combustão ou com célula de combustível para carregar bateria a bordo, ou mesmo com bateria gerada remotamente. Aqui é só o tamanho da bateria porque o conceito é o mesmo.
JornalCana – Os eletrificados chegaram para ficar?
Ricardo Simões de Abreu – O futuro é o veículo eletrificado para o melhor uso da energia, para não jogar fora na frenagem [como ocorre hoje com os modelos à disposição].
No caso do veículo eletrificado, a gente combina com outras tecnologias.
JornalCana – Como assim?
Ricardo Simões de Abreu – Depende de qual é a sua disponibilidade dos tipos de energia. Há as de baixo carbono e solução com abastecimento. Existe dinheiro para bateria? Só ir direto para o elétrico. Vale a pena ter autonomia limitada pelo tamanho da bateria e investir tempo na recarga? Se não houver problemas, a bateria é uma boa candidata.
JornalCana – Exemplifique, por favor.
Ricardo Simões de Abreu – Veja o caso de um veículo elétrico de serviço, com alta rodagem diária inclusive em locais com dificuldades de recarga. Ficar esperando o abastecimento irá custar caro. Mas se não vale a pena o motor 100% elétrico, só ir para o híbrido. E esse pode ser com motor de combustão interna (gasolina ou etanol).
JornalCana – Neste caso, quem sai na frente: gasolina ou etanol?
Ricardo Simões de Abreu – Com a gasolina se resolve a melhora do consumo energético, mas não a questão das emissões [de gases geradores de efeito estufa]. Com o etanol, resolve-se essa questão.
JornalCana – Então há espaço para motores a combustão e os movidos a eletricidade?
Ricardo Simões de Abreu – Eles são complementares. O desafio é usar da melhor forma. Existe nicho em que faz sentido usar veículo elétrico ou híbrido que seja flex.
JornalCana – O desenvolvimento de tecnologias como o das células de combustível a etanol (para gerar hidrogênio e carregar a bateria do híbrido) deve levar alguns anos. Isso não afeta as expectativas em torno dos modelos híbridos flex?
Ricardo Simões de Abreu – Na indústria automobilística, qualquer projeto é demorado. Se se vai fazer um carro com motor novo, é preciso entre três a quatro anos. Esse tempo é para produzir ferramentais, testar, homologar.
Mas é lógico que o prazo é maior ou menor dependendo do nível de esforço de dinheiro injetado. Tome o caso das vacinas anti-Covid 19. Foram desenvolvidas em tempo recorde porque houve dinheiro.
Idem para o carro elétrico. O tempo para desenvolver [a tecnologia de célula de combustível] dependerá da pressa de quem tem interesse em tê-la pronta.
JornalCana – Comente mais sobre a tecnologia de célula de combustível a etanol.
Ricardo Simões de Abreu – No caso da célula de combustível a etanol, o interesse fica reduzido para países que podem usar etanol. É o caso de países como Brasil, Índia e Malásia, entre outros, que terão de se organizar para buscar a solução.
Na verdade, essas células de combustível já existem. A Toyota, por exemplo, possui modelos com essa tecnologia, nas quais o abastecimento é feito com hidrogênio.
JornalCana – Comente mais a respeito.
Ricardo Simões de Abreu – A diferença, aqui, é abastecer com hidrogênio pronto ou com a célula de combustível [que abastece a bateria com hidrogênio produzido a partir de etanol].
A célula atenderá nichos de mercado quando for competitiva. Se a meta é reduzir emissões, essa tecnologia ganha [pela descarbonização permitida pelo etanol].
JornalCana – Temos uma frota de mais de 40 milhões de veículos flex. Será possível melhorar a eficiência desses motores?
Ricardo Simões de Abreu – Difícil fazer isso. Teria de se fazer modificação no veículo. É possível melhorar, mas também é difícil por uma série de entraves. Quando o modelo é feito, há determinada legislação, certificação e calibragem. Não se pode ir lá e mexer.
JornalCana – E quanto às emissões da frota em circulação, dá para reduzir?
Ricardo Simões de Abreu – Sim. Só usar mais etanol. Hoje em média se usa 40% de etanol no Brasil. Se se passar para um consumo de 50%, as emissões serão reduzidas ainda mais. Se quiser mais, só subir esse consumo: 70% de etanol e 30% de gasolina.
JornalCana – Esta é uma solução de descarbonização exclusiva de países que usam o etanol?
Ricardo Simões de Abreu – A frota flex é a única possível de reduzir as emissões. Se der ‘uma dor de barriga no mundo’, e for preciso descarbonizar, a frota flex brasileira está pronta para atender de imediato – só ampliar o consumo de etanol.
JornalCana – Mas o avanço dos elétricos não cumprirá esse papel de descarbonização?
Ricardo Simões de Abreu – Se a partir de hoje forem feitos apenas veículos elétricos para reduzir as emissões, sim. Mas mexe-se daqui para frente.
Quanto da frota de 40 milhões de veículos será substituída por elétricos/eletrificados por ano? Entre 3% e 4%. Sendo assim, quanto tempo será preciso para ter elétricos suficientes e descartar os velhos? Décadas.
[Descarbonizar] através dos elétricos não é solução imediata.
JornalCana – Montadoras lançam e anunciam novos modelos a combustão. Eles não perdem em eficiência para os elétricos?
Ricardo Simões de Abreu – Fala-se que o elétrico tem alta eficiência, de 70%, enquanto o motor a combustão interna tem no máximo 25%. É preciso lembrar que existem motores a combustão chegando a rendimento de 38%, 40%.
O elétrico tem vantagem, mas pega-se energia química (gasolina) e é preciso transformá-la em mecânica para rodar o veículo. E, aqui, a eletricidade pode ser gerada, por exemplo, por uma termelétrica a diesel, que aciona a turbina e então gera a energia. Ela chega de cabelo penteado, pronta para rodar [brinca].
JornalCana – E se a eletricidade for gerada por renováveis?
Ricardo Simões de Abreu – Quando é gerada por fonte solar, eólica e hidroelétrica, há dispêndio de energia e o resultado global é melhor. Não é toda essa diferença, porque o transporte de energia renovável também gera perdas.
Mas pergunto: há energia limpa suficiente? No Brasil, há bastante. Mas se o consumo aumentar de hora para outra, a demanda será coberta por renováveis ou por energia suja?
JornalCana – Em todo caso, qual sua avaliação de mercado para os motores elétricos/eletrificados?
Ricardo Simões de Abreu – Haverá situação em que vale mais o elétrico, e não é pelo consumo ou pelas emissões menores de gases. Veja o caso do ônibus urbano. Em um grande corredor, o elétrico reduz fumaça e ruídos.
Os nichos existem. Por isso não se deve levar a discussão para o elétrico ou para a combustão. É preciso combinar todas as soluções.
JornalCana – Como assim?
Ricardo Simões de Abreu – Onde há estrutura para abastecimento de eletricidade, vamos lá. Onde há necessidade de se reduzir as emissões de carbono, vamos desenvolver motores híbridos como fazem a Toyota e a Volkswagen. Ou fazer célula como faz a Nissan.
Nosso grande desafio é um só: combinar as soluções.
Quem é Ricardo Abreu
Engenheiro mecânico com especializações internacionais, Ricardo Simões de Abreu é referência mundial em motores.
Seu currículo é abastado. Entre as empresas nas quais trabalhou estão a Mercedes-Benz, onde foi gerente de desenvolvimento de motores e responsável pelo programa de gás natural.
Na Tyco/AMP, foi gerente de engenharia e marketing. Já na Mahle Ltda., gerenciou engenharia e vendas e, depois, foi CEO de sistemas de filtração.
Por sua vez, já na Mahle-Metal Leve foi diretor de tecnologia e vice-presidente mundial de desenvolvimento de componentes de motores, cargo que lhe permitiu coordenar 9 centros de desenvolvimentos internacionais.
Abreu tem experiência também na área acadêmica, como professor de energética e máquinas térmicas em quatro instituições.
Ademais, na área institucional foi responsável pela comissão de veículos pesados na Anfavea, atuou na criação do Programa de Controle de Emissões de Veículos (Proconve) e nas evoluções das especificações do óleo diesel e gás natural.
Abreu é sócio fundador da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA).
É também representante do Sindipeças no G3 (Grupo 3) no Rota 2030 e é membro da AAE (Agriculture/Auto/Ethanol), nos Estados Unidos.
No dia a dia, Abreu é consultor da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA) para assuntos de mobilidade e é consultor associado da Bright Consulting.
Como não bastasse, é doutorando no programa de Bioenergia da Unicamp/USP/Unesp.
Delcy Mac Cruz