Antonio Carlos Christiano* e Carolina Christiano**
Segundo levantamento realizado pelo Observatório de Insolvência da PUC/SP, divulgado pelo jornal Valor Econômico, analisando o período entre 2010-2018, mais de 60% das empresas do Estado de São Paulo que solicitaram proteção na Lei de Recuperação Judicial e Falências (LRF)1, não haviam conseguido se recuperar e se desvincular do processo após os 02 anos iniciais de monitoramento previstos na legislação, 25% haviam convolado em falência e apenas 18% destas companhias haviam conseguido de fato se soerguer.2
Considerando o setor de Açúcar e Etanol conclui-se ser a situação ainda mais dramática, com cerca de 30 unidades totalmente paralisadas, em um universo de aproximadamente uma centena de usinas que se socorreram na LRF, com tendência a que este número aumente a cada safra, haja vista os raros casos de sucesso reportados no setor terem ocorrido tão somente em função da venda da empresa, ou mais precisamente, da UPI (Unidade Produtiva Isolada) derivada da companhia original, solução legítima e prevista na LRF.
Cumpre alertar que nestes casos os credores extraconcursais, ou seja, aqueles não sujeitos aos termos da Recuperação Judicial (RJ), como por exemplo as Fazendas Públicas e os credores detentores de garantias fiduciárias que não aderiram ao plano proposto, continuarão a acossar a empresa recuperanda, contudo, sem causar transtornos à UPI, que pela lei não é sucessora destes débitos e nem é considerada empresa em RJ.
Portanto, conclui-se que a quase totalidade das empresas do setor sucroenergético que solicitaram a proteção da Recuperação Judicial e que ainda lutam para sobreviver, enfrentam restrições operacionais, de crédito, de confiança, e permanecem, muitas vezes, sem condições de melhorar seus resultados, sem crescimento e com dificuldades crescentes a cada safra.
À primeira vista poder-se-ia julgar ser a Recuperação Judicial ferramenta inútil e incapaz de auxiliar no soerguimento de empresas em dificuldade, notadamente no segmento Açúcar & Etanol, o que seria uma conclusão precipitada e equivocada, como procura demonstrar este trabalho.
Antes de tudo é imperativo ponderar que a Lei de Recuperação Judicial e Falências, embora careça de melhorias e ajustes, representa um enorme avanço em relação à antiga legislação de Concordatas e Falências, e é um instrumento muito importante no auxílio às empresas em dificuldade, que, todavia, não pode ser utilizada apenas e tão somente como ferramenta de reestruturação de dívidas, como tem sido frequente, sob pena de atacar apenas as consequências, sem eliminar as reais causas dos problemas.
De maneira geral se resumem a 03 as principais razões responsáveis pelo insucesso das empresas que solicitaram a proteção da Recuperação Judicial, todas muitas vezes presentes simultaneamente nos processos, sendo a análise a seguir válida tanto para o setor sucroalcooleiro como também para os demais segmentos da economia:
1- A Recuperação Judicial não foi planejada e é pouco abrangente
Via de regra as empresas buscam a Recuperação Judicial apenas quando tomam conhecimento de um pedido de falência realizado por algum de seus credores, ou quando pressionadas por ações e execuções e, vendo esgotada a capacidade de negociação, não encontram alternativa a não ser se socorrerem deste instrumento legal, ganhando tempo.
É evidente que, por não fazer parte integrante de um plano de reestruturação abrangente, a medida perde potência e é incapaz de conquistar a confiança dos credores, sendo este fator um dos principais causadores do baixo sucesso reportado.
O recomendado é preparar um plano de reestruturação de toda a companhia, que atue em todas as causas que provocaram seus problemas, demonstrando a todos os stakeholders3, quer sejam credores ou não, que um amplo processo de mudança está sendo implementado, que haverá melhoria da governança, que eventuais erros não se repetirão, complementando o trabalho com o pedido de recuperação judicial, quando oportuno e se absolutamente necessário.
Uma das grandes vantagens da LRF é que, ao obter em AGC (Assembleia Geral de Credores) a aprovação da maioria, em algumas classes por número de credores e em outras por total do crédito, aqueles que eventualmente se opuseram ao plano apresentado serão legalmente obrigados a aderir à proposta aprovada, exceção feita aos extraconcursais não aderentes.
Portanto, é absolutamente fundamental construir um plano de recuperação judicial que transmita confiança de que uma revigorada companhia emergirá após concluída a RJ, pois o processo de reestruturação acaba por, de uma maneira ou de outra, provocar insegurança nos interesses de todos os envolvidos, quer sejam eles fornecedores, clientes, colaboradores ou agentes financeiros, sendo imperativo contar com seu apoio para que a implementação do quanto acordado seja de fato eficaz.
2- O Plano de Recuperação Judicial não é crível
Um número significativo de planos de Recuperação Judicial não consegue ser aprovado dentro do prazo legal de 6 meses (período de suspensão de ações e execuções contra a empresa – stay period), contados do deferimento do pedido de Recuperação Judicial pelo magistrado responsável.
A principal razão para a não aprovação destes planos no prazo legal é a não obtenção da confiança da grande maioria dos credores de que as medidas neles apresentadas são factíveis, realistas e serão honradas durante todo o longo período de pagamento previsto, e que anuir com seus termos de fato viabilizará o revigoramento das companhias, para o benefício de todos.
Muitos planos se limitam a “impor” um deságio e um alongamento da dívida financeira, não possuem coerência com a capacidade real de geração de caixa da empresa, se eximem de atacar as causas que geraram as dificuldades presentes, deixando a maioria dos stakeholders absolutamente insatisfeitos, inseguros e descrentes, dificultando a aprovação da AGC.
Os credores, ao perceberem a carência de fundamentação técnica do plano, exigem correções e melhorias na proposta apresentada, ou votam contra ele, o que pode obrigar o magistrado a convolar a Recuperação Judicial em falência da companhia.
Embora não oficialmente previsto na legislação vigente, boa parte dos magistrados, visando a manutenção da empresa e a proteção ao emprego, acaba por deferir prorrogações do stay period, mas isto traz poucos benefícios à empresa se ela concomitantemente não adotar as medidas corretivas necessárias ao seu soerguimento.
3- O timing está absolutamente atrasado
Em artigo recente sobre o Ciclo de Vida das Organizações a Rio Anhumas Consultoria Empresarial abordou a importância de empresas tomarem medidas imediatas tão logo sejam identificados os primeiros sinais de queda em seus resultados, dificuldades na gestão de caixa, aumento do endividamento e problemas com fornecedores importantes, entre outros sintomas.
Nesse sentido é recomendado, tão logo a companhia apresente os primeiros sinais de dificuldade, lançar mão de ajuda especializada em reestruturação de empresas e turnaround, que também possua conhecimentos em processos de recuperação judicial e extrajudicial, de tal forma que ela seja plenamente atendida em todas as suas necessidades e no momento mais oportuno possível.
O tempo que uma organização permanece em processo de negação de seus problemas estruturais e de gestão cria, inevitavelmente, um ambiente de desgaste e de perda de confiança dos seus stakeholders, em grave prejuízo aos interesses da própria empresa, pois são eles que participarão da AGC e que, uma vez aprovado o plano, assumirão o importante papel de apoio integral à recuperação da companhia, continuando a fornecer, comprar, prover crédito, etc.
A perda do timing é um importante causador do aumento das dificuldades de uma empresa e um agravante para o sucesso de qualquer projeto de reestruturação, tendo como coadjuvante a recusa, ou pelo menos a procrastinação das organizações em implementar de forma efetiva as mudanças necessárias.
Para um número significativo de empresas a crise não foi o fator que as levou a obterem maus resultados, como muitas vezes apregoado. A crise apenas e tão somente fez aflorar os seus graves problemas estruturais, suas práticas e conceitos inadequados de gestão e governança, divergências societárias, etc.
Os problemas já estavam presentes, e por não foram enfrentados no momento oportuno, cresceram, enquanto a crise apenas os potencializou e trouxe-os à tona, deixando-os muito mais visíveis.
Concluindo, é imperativo compreender que o espírito da LRF é o de permitir à própria empresa se soerguer, contando com uma boa dose de cooperação de seus stakeholders, mantendo plenas as suas atividades operacionais após atravessar o período de graves dificuldades, entendendo ser a venda da UPI uma alternativa excelente, contudo, acessória na intenção principal do legislador.
Ciente de que obter a aprovação unânime seria objetivo praticamente inalcançável, a LRF dividiu os credores em classes distintas e, como dito, apenas exigiu aprovação por voto de maioria, em alguns casos do valor do crédito, outros da quantidade de credores, sendo este um aspecto extremamente benéfico às empresas, pois submete os votos contrários à decisão da maioria, de maneira absolutamente legal.
Portanto, uma etapa fundamental para aumentar as chances de sucesso de qualquer plano de reestruturação/recuperação judicial é a construção de uma sólida cooperação junto à maioria dos stakeholders, negociada habilmente, pois, como descrito, eles serão atores importantíssimos na AGC e, a posteriori, na continuidade operacional da companhia.
Entretanto, há de se reconhecer, esta não é uma tarefa simples e muito menos fácil de ser arquitetada, notadamente para aquelas organizações que levaram muito tempo para iniciar/implementar as medidas de ajuste/correção entendidas como necessárias pela maioria dos stakeholders, como ajuda a entender a figura a seguir:
Com a devida vênia às particularidades de cada caso, a figura acima exemplifica quais as ações de reestruturação que de um lado acionistas, e de outro stakeholders, têm mais rejeição em adotar/aprovar nos planos de reorganização empresarial, mostrando uma abissal separação de interesses.
Construir um plano de reorganização que permita aproximar os interesses das partes e, portanto, a conjunção das expectativas de acionistas e credores é tarefa hercúlea, mas absolutamente fundamental, exigindo conhecimento e experiência ímpares.
Quanto maior o tempo decorrido e maior o agravamento dos problemas da empresa, maior o desgaste com seus stakeholders, gerando perda de confiança, resultando em maior pressão para que os acionistas flexibilizem seus interesses como forma de permitir a construção de um acordo plausível.
O ápice da pressão exercida pelos credores ocorre através dos protestos de títulos e pedidos de falência, levando as empresas, em atitude de reação e proteção, a se socorrerem do último remédio disponível, qual seja, a Recuperação Judicial, não obstante, de maneira não estrategicamente planejada.
As chances de sucesso ficam mais reduzidas, exigindo muito mais dos planos de reestruturação/recuperação e, em nenhuma hipótese, pode ser atribuída culpa à LRF.
Portanto, a Recuperação Judicial é perfeitamente bem aplicada quando é parte de um processo completo de reestruturação da companhia, com conhecimento e apoio da maioria dos seus stakeholders, sendo utilizada de maneira complementar para legalizar todo o entendimento e evitar deserções futuras, obrigando a adesão dos credores mais reticentes e que atrapalhariam a implementação do plano, impedindo que eles “judicializem” os seus créditos, prejudicando o processo.
Importante considerar que:
a) Se a empresa não está obtendo os resultados desejados, não culpe a crise, aja com presteza e busque ajuda especializada.
b) Se a companhia teve o pedido de Recuperação Judicial deferido e não consegue aprovar o plano junto aos credores, verifique o quanto antes os pontos que causam insegurança aos stakeholders e os corrija imediatamente, demonstrando que todas as medidas necessárias ao salvamento da empresa serão tomadas, sem negligência.
c) Se a organização já está em Recuperação Judicial e mesmo assim seus resultados são insatisfatórios, colocando em risco todo o processo, procure ajuda especializada para, em paralelo à RJ, realizar o trabalho de reestruturação interno necessário ao soerguimento da empresa e, se necessário e oportuno, apresentar em AGC uma nova proposta visando ajustes e correções do plano aprovado.
A LRF é um instrumento fundamental instituído na legislação brasileira e que em breve receberá aprimoramentos importantíssimos, pois já existe comissão constituída e dedicada ao tema. Entretanto, sua eficácia está intimamente relacionada à correta execução do processo integral de reestruturação, tanto por profissionais especializados em turnaround quanto por profissionais da área jurídica, haja vista a necessidade de ambos os procedimentos caminharem concomitantemente.
*Antonio Carlos Christiano (PhD) é CEO da Rio Anhumas Consultoria Empresarial, companhia focada na reestruturação e recuperação de empresas, tendo sido, por mais de 40 anos, executivo de importantes organizações do agronegócio e dos segmentos industrial e de construções e montagens.
**Carolina Christiano (LL.M), advogada com mais de 10 anos de atuação em importantes escritórios de advocacia, possui mestrado em Banking, Corporate and Finance pela Fordham University – New York e especialização em Direito Tributário, Recuperação Judicial e Reestruturação de Empresas pelo Insper, e é sócia do departamento jurídico da Rio Anhumas Consultoria Empresarial.
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