Mercado

Política industrial e livre concorrência

Com o lançamento da Política Industrial (PITCE) o Brasil viu-se diante de importante questão: quais são os limites impostos a ela pelo princípio da livre concorrência?

O tema não é novo na experiência internacional e exatamente por meio dela poderemos encontrar o melhor caminho para os objetivos da economia nacional.

No Japão, principalmente, e na Alemanha, em menor escala, países que se viram forçados a reerguer suas economias após a Segunda Guerra, a política industrial tem preponderância sobre a política de defesa da concorrência.

O sistema alemão, ademais, influenciou o modo com que a Europa unificada passou a tratar o controle de estruturas econômicas. Assim, o artigo 86 do Tratado de Roma estipula que os interesses de política industrial sobrepujam os princípios de livre concorrência. Esta, aliás, tem sido a realidade das decisões comunitárias.

Pode-se dizer, ainda, que o nível de vanguarda tecnológica alcançado pelo Japão guarda, em boa medida, direta relação com a aplicação temperada dos preceitos antitruste. Já na Alemanha, forte ênfase é dada à promoção da competitividade internacional de sua indústria, ainda que para tanto, e desde que haja compensações, seja necessário autorizar concentrações econômicas com potencial de limitação à livre concorrência.

Mas além do Japão e da Alemanha, há também o caso norte-americano. Os Estados Unidos entenderam, a certa altura, que sua legislação antitruste merecia reparos a fim de assegurar a competitividade de suas empresas. Foi então concebida uma espécie de “imunidade” antitruste às companhias cujas atividades se concentrassem na exportação, conhecidas como “export trading companies”.

A seção 4.011 do Código dos Estados Unidos (US Code) prevê que o secretário de Comércio, informado o advogado-geral (que, nos Estados Unidos, se confunde com o ministro da Justiça), poderá, com o intuito de promover e encorajar o comércio exterior, expedir “certificados de revisão” às empresas que declararem que suas operações de exportação não prejudicam a concorrência nos Estados Unidos, não restringem as exportações de seus competidores, não depreciem preços e não constituam práticas anticompetitivas.

O “certificado de revisão” concede à empresa portadora uma espécie de salvo-conduto em relação a qualquer responsabilização antitruste. Assim é que nenhuma investigação ou processo, com base nas leis de defesa da concorrência, poderá ser iniciado contra aquele a quem um “certificado de revisão” tenha sido expedido.

Não obstante, parece claro que no Brasil a política industrial, consoante os princípios constitucionais que regem a atividade econômica, jamais poderá servir como instrumento de afronta à livre concorrência. Na verdade, parece-nos que ocorre exatamente o contrário: seus objetivos são plenamente compatíveis com as finalidades da ordem econômica e, por conseguinte, com a livre concorrência.

Dois setores estratégicos da atual política industrial (softwares e semicondutores) são determinantes para o desenvolvimento tecnológico nacional e assim, a exemplo das mais modernas economias, passíveis de aplicação mais flexível das normas concorrenciais.

Outros setores da economia inseridos na política industrial, considerados “portadores de futuro”, estão, por suas próprias características, intrinsecamente relacionados ao desenvolvimento tecnológico. Dentre eles, a biomassa e, mais especificamente, os combustíveis alternativos, como é o caso do etanol, cuja tecnologia, inteiramente desenvolvida no país, agora buscamos exportar.

O fato é que a própria Lei Antitruste brasileira (artigo 54, parágrafos 1º e 2º), com suporte na chamada “regra da razão” e inspirada em normas antitruste de jurisdições com maior tradição, especialmente da União Européia (Tratado da CE, artigo 81, item 3), prevê expressamente a possibilidade de justificação de posição de domínio de mercado em razão da comprovação de eficiência econômica ou desenvolvimento tecnológico.

Atentos às mais novas tendências da economia internacional, o Ministério do Desenvolvimento e o Cade, conhecedores do enorme desafio atribuído ao segundo em relação à interseção dos objetivos da livre concorrência e da política industrial, iniciam uma construtiva cooperação institucional que agora se consubstancia em um acordo de cooperação.

É também oportuno que, neste momento em que a nova legislação antitruste é posta em consulta pública e deverá ser encaminhada à apreciação do Congresso, seja amplamente discutida a conveniência de adotarmos no Brasil algum tipo de “imunidade” antitruste em favor de nossas empresas exportadoras, inclusive aquelas de médio e pequeno portes.

Fernando de Magalhães Furlan, 36, advogado, mestre e doutorando em relações internacionais pela Universidade de Paris 1 (Sorbonne), foi procurador-geral do Cade de 2001 a 2003. É autor do livro “Questões Polêmicas em Direito Antitruste” (Aduaneiras).